Para não esquecer Violeta Formiga

Paraibana de Pombal, a poeta Violeta Formiga nasceu no dia 28 de maio de 1951. Impossível esquecê-la. Da poesia que plantou ainda sobram sementes.  Sua curta história de vida foi perpassada por palavras e atos sensíveis, expressivos, despojados e comprometidos com a liberdade passarinhada da condição humana. Também por isso é preciso não esquecê-la. Afinal, a literatura brasileira já é um labirinto de inexplicáveis silenciamentos. Na era da comunicação o cancelamento impera e a vaidade gera mais curtidas e compartilhamentos que leitores e leitoras.

A história da poeta Violeta Formiga transcende o seu tempo. Sua poesia ficou para contar o que ainda não sabemos. Seus versos mostram um diálogo permanente e escancarado com a vida. A poeta viveu num cerco de intensidades. Mergulhou nos sentimentos profundos e nas profanações literárias. Muitos dos seus poemas, de certa forma, denunciam o confronto vivido com a morte.  É na poesia que localizamos seus medos e suas coragens. Sua valentia de despedaçar-se em palavras que ficariam eternizadas num acervo de susceptibilidades e num pulsar intenso por onde ela própria se derramava em cada passo, em cada verso.

Violeta Formiga - um caso de feminicídio
na história da literatura paraibana.

No dia 21 de agosto de 1982 a poeta Violeta Formiga foi covardemente assassinada pelo marido enciumado. Um crime que marcou a história recente da Paraíba pela violência e pela impunidade. Uma tragédia nascida do machismo que ainda impera e mata todos os dias. Hoje, entraria nas lamentáveis estatísticas do feminicídio. Um ano antes de sua morte, havia publicado o seu primeiro e único livro em vida, "Contra Cena", pelas Edições Macunaíma. No ano seguinte da sua morte seus amigos e familiares reuniram mais alguns poemas inéditos e publicaram postumamente o livro "Sensações", de onde extraímos os poemas que mostraremos nesta edição.

A poesia de Violeta Formiga lembra o que Edgar Morin diz no livro Amor, poesia, sabedoria. “Reconhecemos a poesia não apenas como um modo de expressão literária, mas como um estado segundo do ser que advém da participação, do fervor, da admiração, da comunhão, da embriaguez, da exaltação e, obviamente, do amor, que contém em si todas as expressões desse estado segundo,” diz o francês. Parece que ela era matéria latente em todo o seu derramamento poético. Construiu versos que revelavam o êxtase ou a dor. Expressões talhadas com a mesma lâmina afiada.

Em depoimento recente o poeta Chico Lino Filho nos revelou a tensão dos últimos dias vividos por Violeta: “estive com ela poucos dias antes da sua morte. Me deu carona da UFPB até o Tomás Mindelo, onde funcionava a Oficina Literária. Durante a carona, senti ela muito tensa. Certamente já vinha sendo ameaçada,” diz o poeta. Rosana Chaves também relembra, “ela falava do casamento fracassado e o quanto seu assassino era machista. Mas ela não acreditava que seria assassinada. Enfim, nenhuma mulher pensa no pior. Mas deveria!” Não são raros os autores ou autoras em que a vida e a obra se conjugam permanentemente. Alguns, fingem que a poesia é apenas produto da carpintaria criativa. Em muitos e muitas, o sentir e o pensar caminham juntos. Violeta era assim.

Nada mais se pode fazer depois de um fato consumado. A morte é um fato consumado. Mas que a poesia de Violeta Formiga é expressiva e lírica, também é fato. Uma poesia viva o bastante para não ser esquecida.  Marcada pelo espontaneísmo marginal que sustentava parte da poesia feita na época. A sua inconfundível percepção de tudo, certamente provocaria correções neste rumo. Afinal, viver poeticamente é reinventar-se sempre e o que mais a sua poesia revela é exatamente esse entrelaçamento entre com a vida. Com a necessidade permanente de recriar-se e resistir até o fim.

Contemporânea de Ana Cristina Cesar, Paulo Leminski, Leila Míccolis, Alice Ruiz, Geraldo Carneiro e outros e outras poetas que começavam a redesenhar a realidade editorial da poesia brasileira num rasgo de rebeldia e sede libertária. Era o Brasil saindo de uma ditadura. As tretas literárias ainda estavam muito vivas. As rupturas oferecidas pela Poesia Concreta marcariam para sempre a poesia brasileira. Todavia, Violeta não me parecia muito preocupada com essas batalhas. Buscava uma poesia próxima ao açude das confissões mais íntimas. Naquele momento era ainda uma poeta em formação. Assim como são eternamente todos os poetas que se prezam. A vida é um caminho sem volta. A poesia, também.

Em reportagem de 2013 do Jornal A União, a escritora paraibana Neide Medeiros relembra sua poesia: “ela se destacava porque escreveu poemas modernos e curtos, abordando temas como a vida, a dor, a solidão e o amor que são universais e por isso não se desgastam com o tempo”. Já o poeta e crítico Hildeberto Barbosa Filho destaca que   poesia de Violeta Formiga “é lírica e confessional, mas não resvala para o subjetivismo, é uma poética que se centraliza no emissor, no eu-lírico”. Seu assassino mal sabia que mataria muitas violetas, mas todas retornariam em versos enquanto ele seria esquecido em seu inferno de mediocridade e sua impunidade.

Violeta viveu intensamente as celebrações literárias da capital paraibana no final dos anos 70 e início dos anos 80. Um período em que brotavam movimentos de vanguarda nas artes em todos os lugares, a exemplo do pessoal do Lira Paulistana e das transgressões atonais de Arrigo Barnabé. A música popular nordestina explodia no Brasil e no mundo. Violeta viveu nos espaços undergrounds da capital da Paraíba. Ela viveu o que pode ao lado do também saudoso poeta Tota Arcela, da poeta Socorro Leadebal e a da turma mais descolada da cena cultural pessoense nas últimas décadas.

A poesia de Violeta Formiga é uma pulsação que seu assassino não conseguiu extirpar. Seus versos eram um recorte do seu jeito de estar no mundo numa intensidade avassaladora. Certamente que poesia não é só isso e ela sabia. É uma poesia que arranca os seus motivos de dentro de uma alma libertária. Uma escrita de percepções: “Enquanto você/ passava/ eu pensava/ subalterna: / existe alguém / por trás / da janela” (Volição, pg 32). Parece que mergulhava com velocidade e precisão nas suas vivências, mas sem renunciar à autonomia do olhar. Não renunciava a grandeza de expressar-se e sentir-se na própria pele. Seus poemas eram os pilares da sua existência.

Poesia centrada nos confrontos históricos da condição de mulher no seio do patriarcado com suas pesadas heranças culturais. Sobre o que ela representou, o jornalista F. Pereira Nóbrega foi cirúrgico: “Violeta, onde estiver, repetirá a primeira frase que me disse: ‘deixaram a gaiola aberta o passarinho voou. Achei foi bom’ ”. A natureza libertária da autora se expressava com delicadeza e singularidade. Era a verdade do que ela foi, viveu e sentiu. Provavelmente feminista sem ainda discutir o feminismo, mas expressando poeticamente a soberania fêmea da literatura. Especialmente na poesia.

Violeta tinha algo a dizer para as sutilezas da vida cotidiana. Este lugar onde debulhamos nossas atitudes para descobrir um pouco mais o que somos de verdade. O amor foi o seu mergulho e sua tragédia. Sua poesia tem uma face profética. Traz o esboço do que seriam os primeiros passos de uma poeta que, caso não tivesse sua vida interrompida aos trinta e um anos, teria crescido no terreno fértil da lírica paraibana. Uma poesia que já apontava para uma ruptura com a espontaneidade que reinava entre os jovens e as jovens poetas daquela época. Tempo do mimeógrafo, das ações guerrilheiras da poesia e dos assaltos poéticos gritados pelas esquinas.

“Violeta fez questão de gritar e gesticular pra todo mundo com suas estrofes, versos, pontos e reticências”, disse Carlos Tavares. É esse gesto que permanece entre nós. Lutando contra as injustiças, contra toda essa violência que fez sua vida rodar de forma bábara na eterna ciranda da morte. Uma poesia que não se acomoda. Busca o sumo. A melhor extração de um sentimento que a fazia pensar ou de um pensamento que a fazia sentir. Há nos versos de Violeta a expressão de toda uma filosofia para a vida de uma mulher cuja felicidade jamais se submeteria ao cárcere, mesmo por amor. Pagou com a vida o confronto com o comportamento animal do homem que não sabe perder. Mata para não ceder. Não, o assassino não matou sua poesia.

                      

POEMAS DO LIVRO SENSAÇÕES


O segundo livro de Violeta Formiga,
já foi uma edição póstuma.

 

AFETIVIDADE


Sou.
Estou.
Indefinidamente
vou.

 

*

 

VIVÊNCIA


Faço poema
como quem faz
pão:
faminta e necessária.

 

*


DO LADO ESQUERDO

Sou o sentido contrário
das coisas cálidas,
pálidas,
serenas.

O deserto,
o incerto,
o incesto,
a cena.

 

 *

 

NASCIMENTO


Saio de mim mesma
como pássaro
do ovo.

De espaço e asas
faço meu aprendizado,

Mágico voo.

 

 *

 

O TEMPO

O tempo
passa como o vento
com as estações
passado-presente.

O tempo
desconhece as cores
incolores do silêncio.

O tempo
segue sem trilhas
as linhas infinitas
do momento.

 

*

 

AFIRMAÇÃO


A poesia
nasce do dia.
Não deixe que eu morra,
me sinta.
É assim que eu sou
alegre e triste,
eterna e não efêmera,
amante do belo
e da miséria, companheira.
Não me evite,
me tenha
mesmo guardada em segredos
ou exposta ao sol
e ao vento.
Não tenho tempo fixo,
nem infância, nem velhice
e me faço sempre presente
onde a vida insiste
e resiste
persistente.

 

*

 

GAVETAS

 

Ficou detido
no armário
um beijo.

Era cedo.
Igual ao frio
que na madrugada
chega.

Até então
eu pouco sabia
de confissões
e medo.

 

*

 

ROMANTISMO

 

Vida
faço e sou feita
de sentidos.

Bebo vinho
escuto uma sonata
e me abrigo


numa grande noite
de um mundo
antigo.

 

*

 

DEDICATÓRIA

 

Acasalada
feito pássaro
deixa-me voar
desfeita.



MAGIA


Construir no teu corpo
meu castelo,
fortaleza de árvores,
pontes e anúncios,
provar o fruto maduro,
transformar dores em flores
silvestres
e o dia amanhece.
(universalmente amanhece)
sentir o orvalho,
aroma
de tudo que apodrece
atrás do muro,
dentro da lama,
onde a vida se revela
sem mistérios.
E entre o muro
e o castelo,
teu corpo dança nas estrelas,
dança na fogueira
a dança dos deuses
e demônios.
Eu tento atravessar
a corda,
abrir a porta,
mas sobre o deserto,
o gesto
permanece mudo.

 

*

 

INFÂNCIA

Como se ontem
fosse
sentados juntos
na areia.

Éramos suficientes.

 

*

 

SUBJETIVIDADE

 

As cores do outono,
as flores da primavera,
o encontro com a chuva,
o vento.

O silêncio das madrugadas.
O silêncio do silêncio,
o silêncio da vida,
silêncio.

 

*

 

ESSÊNCIA

 

Procuro
o cerne,
encontro
o verme.

será ela?

 

*

 

RECADO

 

Quantas luas
se passaram
dentro do quarto,
no anonimato,
no outro lado
do asfalto
onde minhas mãos
procuram
extrair das tuas
o permitido
afago.


 

PRIMAVERA

Partida ao meio
entre deuses
e demônios,
me concebo.


*


INTEIRA


Minha vida
por uma única
palavra:

liberdade.

(Então eu
serei feliz
como os anjos
que ainda não
nasceram).

 

*

 

SENSAÇÕES

É simples.
Não me aproximo.
Tenho medo.
Você não compreende
como o deserto
cresce.
Você não entende
o desejo latente
contido em cada
gesto.
Da solidão,
sensações.
(Se você soubesse).

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