Gisberta na pele e na voz de Letícia Rodrigues.
Você sabia que o Brasil é o país que mais mata travestis e mulheres trans? Você sabia também que, ironicamente, nosso país é o que mais consome pornografia trans? Eis uma equação para ser decifrada. O espetáculo “Gisberta” que assisti semana passada no teatro Ednaldo do Egypto é um bom começo de conversa. Um monólogo escrito e interpretado pela atriz Letícia Rodrigues.
A atriz Letícia Rodrigues – que é uma mulher trans,
incorporou muito mais que a personagem. Ela vestiu integralmente a pele de
Gisberta para ser, no palco, mais uma entre tantas mulheres trans e travestis violentadas
e assassinadas. Letícia nos convida para um espetáculo que é uma pancada no
fígado. Algo que nos deixa com um nó na garganta e lágrimas salgando o olhar. Nosso
desafio, todavia, é ser mais do que plateia. Leticia nos convida a refletir e
tomar posição diante de uma realidade muito triste.
Além da direção luxuosa de Misael Batista, o espetáculo conta
com a força colaborativa de Nuno Lima, enfermeiro e amigo de Gisberta. A partir
de conversas com Nuno, Letícia construiu uma dramaturgia de choque. Traz para o
palco um discurso direto e na primeira pessoa. Uma ode desesperada e um grito covardemente
silenciado. Eis o teatro enquanto representação viva das tragédias da vida real.
Uma narrativa dialogada com quem sentiu de perto uma brutalidade provocada por
crianças e adolescentes. A estupidez da inocência contaminada pelo ódio. O
desprezo pela condição humana enquanto alicerce de todas as fragilidades do
mundo.
O texto é forte e Letícia tem uma atuação visceral. O
espetáculo mergulha literalmente no poço onde o corpo de Gisberta foi
encontrado. Ao construir o cenário, a sensibilidade de Robson Oliver desenhou
as marcas do horror silencioso das equipes de perícia policial. O horror que ceifou
a vida de Gisberta ainda mata neste “país tropical abençoado por Deus e bonito
por natureza”.
O figurino de Ângelo Rodrigo soube traduzir a decadência. A
tristeza dos últimos dias de Gisberta. Uma criatura já consumida pelo HIV e
contaminada pelo desprezo. A trilha sonora ao vivo fica por conta de Chris
Maurício e Alexsandra Oliveira. Constroem um ritmo alucinado, mas também pesado.
Pesado como um corpo que cai num poço
para nunca mais voltar. Com Gisberta a vida mergulhou num silêncio de bolhas
que estouram sem ruído, mas arrancam o público do seu lugar de conforto.
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