Gisberta na pele e na voz de Letícia Rodrigues.

Você sabia que o Brasil é o país que mais mata travestis e mulheres trans? Você sabia também que, ironicamente, nosso país é o que mais consome pornografia trans? Eis uma equação para ser decifrada. O espetáculo “Gisberta” que assisti semana passada no teatro Ednaldo do Egypto é um bom começo de conversa. Um monólogo escrito e interpretado pela atriz Letícia Rodrigues.

A história de Gisberta é triste. Muito triste. Um texto real que saiu diretamente da vida para os palcos. Fala de uma mulher trans brasileira que foi viver em Portugal para escapar da violência transfóbica no Brasil. Acabou torturada e morta por quatorze crianças e adolescentes. Na época eles tinham entre doze e dezesseis anos. O que torna tudo muito mais sombrio. O crime aconteceu em 2006 e ainda continua impune. Na cidade do Porto, Gisberta se tornou um símbolo da luta contra a transfobia. A dor da tragédia alimenta a força da resistência.


Letícia propõe o espetáculo em razão da Semana de Visibilidade Trans. Depois de João Pessoa, o espetáculo estará dia 26 na Associação Comercial de Patos. Dia 27 segue para Sousa, no CCBNB e encerra dia 29 em Campina Grande, no Cine Teatro São José. A Semana de luta política contra a transfobia acaba, mas a luta de Letícia é permanente. Guerreira, ela busca um mundo sem homofobia e transfobia. Combate de peito aberto crimes que silenciam vozes já oprimidas em uma sociedade que se acostumou a trocar o respeito pela hipocrisia.



A atriz Letícia Rodrigues – que é uma mulher trans, incorporou muito mais que a personagem. Ela vestiu integralmente a pele de Gisberta para ser, no palco, mais uma entre tantas mulheres trans e travestis violentadas e assassinadas. Letícia nos convida para um espetáculo que é uma pancada no fígado. Algo que nos deixa com um nó na garganta e lágrimas salgando o olhar. Nosso desafio, todavia, é ser mais do que plateia. Leticia nos convida a refletir e tomar posição diante de uma realidade muito triste.

Além da direção luxuosa de Misael Batista, o espetáculo conta com a força colaborativa de Nuno Lima, enfermeiro e amigo de Gisberta. A partir de conversas com Nuno, Letícia construiu uma dramaturgia de choque. Traz para o palco um discurso direto e na primeira pessoa. Uma ode desesperada e um grito covardemente silenciado. Eis o teatro enquanto representação viva das tragédias da vida real. Uma narrativa dialogada com quem sentiu de perto uma brutalidade provocada por crianças e adolescentes. A estupidez da inocência contaminada pelo ódio. O desprezo pela condição humana enquanto alicerce de todas as fragilidades do mundo.

O texto é forte e Letícia tem uma atuação visceral. O espetáculo mergulha literalmente no poço onde o corpo de Gisberta foi encontrado. Ao construir o cenário, a sensibilidade de Robson Oliver desenhou as marcas do horror silencioso das equipes de perícia policial. O horror que ceifou a vida de Gisberta ainda mata neste “país tropical abençoado por Deus e bonito por natureza”.

O figurino de Ângelo Rodrigo soube traduzir a decadência. A tristeza dos últimos dias de Gisberta. Uma criatura já consumida pelo HIV e contaminada pelo desprezo. A trilha sonora ao vivo fica por conta de Chris Maurício e Alexsandra Oliveira. Constroem um ritmo alucinado, mas também pesado. Pesado como um  corpo que cai num poço para nunca mais voltar. Com Gisberta a vida mergulhou num silêncio de bolhas que estouram sem ruído, mas arrancam o público do seu lugar de conforto. 

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