As escolhas afetivas de Débora Vieira.

Que a cantora Débora Vieira é memória viva dos palcos da Paraíba desde os anos 80, todo mundo sabe. O que muita gente ainda não sabe é que recentemente ela gravou um álbum que revela um pouco dessa t
ravessia. Realizou suas escolhas sem pressa. Buscou músicos competentes e arranjadores experientes para entregar ao público um álbum expressivo que traduz um pouco da sua trajetória na vida e na arte.

Quando se fala em música paraibana estamos falando de muitos infinitos. A Paraíba tem uma tradição musical inspiradora. Terra de gênios como Sivuca, Jackson do Pandeiro e José Siqueira. Aqui nasceram artistas que por diferentes caminhos tatuaram seus nomes na pele da música brasileira. Falo de Zé Ramalho, Elba Ramalho, Geraldo Vandré, Cassiano, Chico Cesar, Cátia de França, Livardo Alves, Flávio José, Herbert Viana, Lucy Alves, Roberta Miranda, Vital Farias, entre tantos e tantas.

Por aqui sempre houve uma conexão natural com as revoluções estéticas do mundo.  Também com as contestações artísticas Brasil afora que encaram de frente os “paredões” do mercado fonográfico. Na São Paulo dos anos 80, por exemplo, a história da música brasileira asfixiada pela ditadura respirava no Lira Paulistana. Uma revolução feita num porão com 150 lugares. Reuniu Itamar Assunção, Arrigo Barnabé, Cida Moreira, Tetê Espíndola, Eliete Negreiros e grupos como o Língua de Trapo, Premeditando o Breque, Rumo e outros. Era o contraponto para um mercado da música que já apostava num gênero popularesco midiático de baixo calão.

Naquele momento, sem qualquer apoio oficial, movimentos como o Musiclube da Paraíba também faziam a guerrilha cultural acontecer. No centro de tudo, a música atonal e o experimentalismo sem limites do Grupo Jaguaribe Carne - aliás, uma escola de artes. Desta fornalha também surgiram artistas fantásticos como Paulo Ró, Pedro Osmar, Milton Dornellas, Adeildo Vieira, Totonho, Escurinho e muita gente. A música paraibana também mostrava sua força em outras frentes com Anay Claro, Soraia Bandeira, Glória Vasconcelos, Dida Fialho, Parrá, Débora Vieira, Cacá Ribeiro, Gracinha Teles, Gláucia Lima. A nossa cena nunca foi fraca.

Naqueles tempos de redemocratização da vida brasileira um grupo de poetas, atores, atrizes, músicos, fazia intervenções na velha Parahyba do Norte. Era o grupo Oficina Literária - uma trupe irreverente. Gente antenada que corria riscos, mas sabia que revoluções silenciosas derrubam as tiranias.  O Oficina fez história desafiando os limites da então muito mais provinciana capital da Paraíba. O timoneiro era o saudoso poeta Tota Arcela. Neste cenário povoado de pequenas e grandes transgressões nasceu artisticamente a cantora Débora Vieira.

Débora é uma artista atenta às delicadezas imprescindíveis da vida. Mais que isso. Dedicou-se a gravar um disco mostrando um recorte generoso de uma jornada coletiva. Uma história que era ouvida na extinta Rádio Universitária da UFPB. Onde Bráulio Tavares cantava a “Balada do andarilho Ramon” e Nelson Coelho de Castro cantava o que também estava fora das rádios comerciais de Porto Alegre. O disco “Matreira”, de Débora Vieira nos conta um pouco disso tudo, mas avança para o futuro. Por exemplo com música inédita de Escurinho. É um disco de escolhas muito efetivas, mas também bastante afetivas.

Débora abre o álbum com “A chance da paz”. Um clássico de Tota Arcela e Lis Albuquerque. Uma escolha cardíaca, tenho certeza. Depois vai abrigando outras preciosidades como “Domingo em Marte”, de Cassandra Veras; “Cantador de Rua” do Dida Fialho e uma das grandes pérolas da história da música popular da Paraíba que é “Sete Boleros Cardíacos”. Um poema de Marcos Tavares musicado de forma primorosa pelo mestre da invenção, Paulo Ró.

Neste disco Débora se apresenta também como compositora da canção que dá título do álbum, “Matreira”. Uma bela canção feita em parceria com Joãopedro Saneto. É um disco de muitos destaques. Adeildo Vieira, Escurinho, Bráulio Tavares, Junior Targino,  Odair Salgueiro, Carlos Anísio, Águia Mendes, Hildeberto Barbosa. No instrumental e arranjos, nomes de peso como Sergio Gallo, Beto Cabeça, Jorge Ribas, Léo Torres, Jorge Negão e uma lenda da música paraibana, o querido e saudoso Glauco Andrezza.

Débora reuniu relíquias para celebrar tão somente a arte e não os desatinos de ocas projeções midiáticas. É uma artista consciente da sua condição e da sua história. Sabe do chão que pisa e reconhece os caminhos por onde andou. Não por acaso a capa do disco é obra de David Barbosa, de saudosa memória. Por isso insisto que esse disco conta uma história. E como é importante afirmar as histórias verdadeiras num mundo de influencers, gente fake e cancelamentos implacáveis. Algumas canções já estão no Spotify. Sugiro que você escute AGORA “Sete boleros cardíacos”.